Atualmente com 12 unidades de saúde distribuídas pelo país e respetivas ilhas, as Irmãs Hospitaleiras prestam cuidados diferenciados com foco na saúde mental e psiquiatria. O respeito pela sensibilidade e pela individualidade da pessoa em sofrimento está sempre em primeiro lugar. Em entrevista à Revista Qualidade & Inovação, a Irmã Idília Carneiro e Pedro Varandas, diretor clínico e psiquiatra, sublinharam a importância da saúde mental e do cuidar das pessoas de forma integral.
Quando surgiram as Irmãs Hospitaleiras do Sagrado Coração de Jesus?
Idília Carneiro: As Irmãs Hospitaleiras do Sagrado Coração de Jesus surgiram em 1881, em Espanha. Na origem esteve uma necessidade social emergente de cuidar das pessoas com doença mental, segundo os princípios da doutrina social da igreja e com esta característica tão forte que é unir ciência e caridade cristã. Em Portugal estamos há 128 anos e o primeiro centro em Portugal foi a Casa de Saúde de Idanha. Ao longo de mais de 100 anos de presença em Portugal, expandimos a nossa atividade a nível nacional, contando hoje com uma rede ampla de 12 estruturas e serviços de saúde com intervenção a todos os níveis da saúde mental, representando um total de 2970 camas de internamento e também com áreas de ambulatório, reabilitação geral e cuidados paliativos, ou seja, com uma grande diversidade de serviços em diferentes vertentes clínicas.
Pedro Varandas: Como a Irmã Idília referiu, a primeira unidade fundada em Portugal foi a Casa de Saúde de Idanha em 1894 e é a maior unidade de saúde das Irmãs Hospitaleiras com cerca de 500 camas de internamento em diferentes áreas clínicas de resposta e com um serviço ambulatório muito alargado, com consultas externas diversificadas, assim como intervenções terapêuticas especializadas com abordagens comunitárias. Cada vez mais esse aspeto é importante, tanto a nível interno como também na prestação de serviços em proximidade no atendimento das pessoas. Também é importante a capacidade de pôr o nosso know-how ao serviço da comunidade, quer em áreas de formação, quer em áreas de consultoria.
É toda uma área, preferencialmente dentro da saúde mental, atentos às novas necessidades, mas que desde há alguns anos expandimos para áreas afins do sofrimento humano, onde o sofrimento psicológico esteja claramente presente, daí por exemplo termos aberto uma unidade de cuidados paliativos, respostas de internamento e ambulatório de reabilitação global para recuperação da pessoa com problemas de lesão cerebral ou de outra afeção com incapacidade física.
Em que localidades estão presentes as Unidades de Saúde hospitaleiras?
Idília Carneiro: No Continente temos oito unidades, quatro na região de Lisboa, uma em Braga, uma na Guarda, outra em Condeixa-a-Nova e Portalegre. Nas Regiões Autónomas, temos duas unidades na Madeira, uma delas direcionada para crianças, adolescentes e jovens com problemas de doença mental, e duas nos Açores.
Porquê uma área de atuação tão forte e com um número tão significativo de estruturas e respostas em saúde mental?
Idília Carneiro: Faz parte do carisma das Irmãs Hospitaleiras e expressa a nossa identidade. Para nós, a hospitalidade é precisamente acolher e cuidar as pessoas mais frágeis e vulneráveis da sociedade que, neste caso, são as pessoas com doença mental. Se nos situarmos no final do século XIX, sobretudo as senhoras com doença mental, ainda estavam numa situação de grande marginalização relativamente aos cuidados terapêuticos. Também sabemos que os próprios cuidados em saúde mental careciam desta dimensão de humanização e, ao mesmo tempo, também se estavam a desenvolver os modelos terapêuticos com caráter mais científico e adequado às necessidades de cada pessoa. Para nós, o cuidar sobre estes princípios humanistas cristãos é olhar para a pessoa no seu todo, reconhecendo nela uma dignidade inviolável. Trabalhamos para que estas pessoas se sintam respeitadas e cuidadas com uma intervenção, multidimensional, que abranja todas as dimensões do ser pessoa, procurando a sua recuperação e autonomia, tanto quanto seja possível.
O nosso desafio: cuidar a pessoa no seu todo e não estigmatizar alguém que tem uma doença mental ou uma incapacidade. O sofrimento mental e a doença mental afetam as dimensões mais profundas do nosso ser como pessoas. Portanto, maior é o desafio para quem cuida. É indispensável falar também de todo o acompanhamento que damos às famílias e sua integração nos processos terapêuticos e reabilitadores. Todo o modelo assistencial e organização das nossas Unidades de saúde têm as pessoas no centro, procurando a melhor terapia para cada um, assentes em planos de intervenção individuais e personalizados
Quais são os principais serviços que prestam aos utentes?
Idília Carneiro: A nossa área de intervenção especializada é a saúde mental e psiquiatria, a nível de infância, adultos e idosos. Ao longo do tempo temos alargado a nossa intervenção a áreas inovadoras e emergentes, nomeadamente serviços e valências na área da demência, cuidados paliativos e reabilitação. Procuramos responder a novas necessidades, complementando, neste caso em concreto, as áreas dos cuidados paliativos, com a nossa forma de estar na saúde e com o acompanhamento global que também é um contributo importante.
Somos uma IPSS com fins de saúde e para a prestação de cuidados de saúde, desenvolvemos Acordos com várias entidades, sendo a mais significativa com o SNS.
Falem-nos da equipa que integra a Instituição.
Pedro Varandas: Temos praticamente 2200 pessoas a colaborarem na obra hospitaleira nas nossas unidades, desde médicos de várias especialidades, psiquiatras, enfermeiros, psicólogos clínicos, assistentes sociais, farmacêuticos, fisioterapeutas, psicomotricistas, terapeutas ocupacionais, assistentes espirituais, terapeutas da fala, animadores socioculturais, e toda a área de serviços de suporte e logística, administrativos, auxiliares e outros.
Consideram que existem falhas no que diz respeito ao apoio à doença mental?
Pedro Varandas: Verificamos factualmente e essa também tem sido uma preocupação expressa pela própria Direção de Saúde Mental que a resposta pública aos cuidados às pessoas com doença mental não é suficiente para as necessidades existentes. Por outro lado, em geral o entendimento público do que são doenças mentais é razoavelmente restrito. Quando olhamos para as políticas públicas e para a legislação que a suporta, em Portugal, o entendimento restrito é esse, ou seja, doenças mentais são as formas graves das doenças psiquiátricas, como é o caso da esquizofrenia ou doença bipolar. De outra forma, o entendimento das Irmãs Hospitaleiras nunca foi só esse, porque integrou uma área que as políticas públicas portuguesas colocaram sempre na área social, como por exemplo a área da deficiência intelectual. Em Portugal, a atenção à deficiência intelectual desenvolveu-se muito ao nível do estado após o 25 de Abril. As irmãs já acompanhavam estas pessoas há décadas. Em particular na Deficiência Intelectual são hoje mais prevalentes novas formas de apresentação psicopatológica em que as alterações comportamentais resultantes de Perturbações da Personalidade concomitante (Duplo Diagnóstico) determinam uma intervenção mais especializada e complexa para as quais as respostas públicas são escassas ou mesmo inexistentes. Neste âmbito torna-se premente a criação de respostas protocoladas especialmente direcionadas para estas novas realidades de patologia complexa na sua abordagem e nos processos terapêuticos.
Naturalmente que a expectativa de vida da população foi aumentando, assim como as necessidades de cuidados na saúde mental das pessoas de todas as idades ao longo do ciclo de vida. A presença das Irmãs Hospitaleiras numa distribuição geográfica tão ampla, permite uma capacidade de resposta e maior cobertura das necessidades mais prementes na área da saúde mental, consubstanciado neste entendimento carismático mais alargado e abrangente quer em termos de internamento, quer nas estruturas comunitárias e de proximidade.
É importante referir que as doenças mentais atingem uma população muito elevada e a prevalência das doenças mentais tende a aumentar. Mesmo com a melhoria das intervenções terapêuticas há um grupo de pessoas que não reúne condições, a partir de uma certa altura, para poder viver em comunidade. É preciso prever as necessidades e desenvolver respostas de saúde humanizadas e especializadas, adequadas às necessidades de cuidados dos doentes e isso é o que as Irmãs Hospitaleiras fazem há mais de 100 anos.
A doença mental tem vindo a apresentar características diferentes ao longo do tempo?
Pedro Varandas: Sim, sem dúvida. A doença mental não se mantém com as mesmas características. Enquanto psiquiatras, estamos numa fase de tentar interpretar novas formas de sofrimento e novas patologias para percebermos o que está a acontecer e, consequentemente, para nos podermos adaptar e sabermos como abordar do ponto de vista terapêutico. A pandemia é um dos exemplos de como as características se alteram. Temos como exemplo os mais jovens. Como as escolas estavam fechadas, a aprendizagem processou-se à distância, e os jovens mais vulneráveis, que eram mais introvertidos, tímidos, com mais dificuldades relacionais ficaram mais vulneráveis e em muitas situações surgiram perturbações do foro psiquiátrico e, tendo em consideração que as grandes doenças psiquiátricas se iniciam no jovem e no início da vida adulta, a pandemia poderá ter tido um impacto que teremos de avaliar com brevidade e rigor.
Que exemplos nos podem dar do trabalho e da proatividade do serviço das Irmãs Hospitaleiras?
Idília Carneiro: As Irmãs Hospitaleiras e os Irmãos São João de Deus fomos pioneiros, em Portugal, em novas áreas de cuidados e reabilitação, por exemplo nos anos 90, implementando estruturas de desinstitucionalização de doentes e já no início de 2000 criámos respostas especializadas na área da demência, com uma unidade de internamento e ambulatório.
À data de hoje, embora tenhamos um Plano Nacional de Demências, não temos uma rede e recursos capazes de responder a nível nacional à área das demências e depois uma resposta mais comunitária.
Preferencialmente, os nossos serviços são para as pessoas que não têm grandes recursos. Mas, na verdade, estes cuidados mais especializados são mais morosos e mais caros. Isto é algo que nos preocupa, porque a nível das políticas de saúde e estratégia nacional da saúde mental é necessário ter um leque mais abrangente de respostas. Nós e os Irmãos São João de Deus representamos 67% da resposta a nível nacional no que diz respeito à saúde mental.
Quais são os desafios que enfrentam atualmente?
Idília Carneiro: O desafio maior é de facto o de responder às necessidades dos doentes e suas famílias num momento em que o sofrimento humano e as exigências da qualidade do cuidar com humanidade são grandes e, simultaneamente, os recursos são escassos. Estão a aparecer cada vez mais doentes com problemas psiquiátricos graves e com perfis muito mais complexos. Falamos de pessoas mais jovens que carecem de um acompanhamento terapêutico clínico e de reabilitação, mais intensivo. É necessário que as respostas clínicas que existem promovam a recuperação da pessoa reabilitar-se na medida das suas possibilidades e conseguir, mesmo que esteja internada, ter um espaço de vida em que se sinta dignificada. A pandemia acelerou as situações de maior fragilidade psíquica e de sofrimento, mas também veio mostrar a incapacidade que o nosso sistema e o modelo de financiamento da saúde têm para respostas de saúde mais especializadas e sustentáveis. Esta é uma das grandes preocupações que enfrentamos neste momento. Um outro desafio que enfrentamos, como muitas outras organizações, é o das equipas, pois queremos prestar o melhor serviço do ponto de vista terapêutico e científico, sempre com este olhar humano e dignificador sobre a pessoa.
Têm parcerias ou acordos com outras Instituições?
Idília Carneiro: Temos acordos com várias entidades. Cerca de 75% das pessoas internadas nas nossas unidades de saúde são do SNS, mas depois temos acordos com outros subsistemas públicos e privados e seguradoras. Também atendemos pessoas em regime privado. Toda a área de resposta ambulatório é algo que estamos a tentar desenvolver ainda mais nalgumas zonas onde ainda não tínhamos desenvolvido tanto, na zona norte e centro. Nestas zonas, em termos de ambulatório, as respostas são privadas e também com alguns subsistemas. Estamos também a desenvolver alguma especialização em termos de curto internamento e ambulatório que consideramos que são respostas muito importantes neste momento.
A formação é uma aposta para as Irmãs Hospitaleiras?
Idília Carneiro: Sim. Procuramos cuidar a integração das pessoas nas nossas Unidades, proporcionando uma formação que engloba a dimensão humana e pessoal, de valores e boa conduta, e as dimensões técnica e operativa de desempenho profissional. Para cada colaborador define-se um plano de desenvolvimento acompanhando, não só na fase de integração mas ao longo da sua vida e de todo o ciclo dentro da instituição. Trabalhamos não só o saber fazer os conhecimentos técnicos, mas também o sentido da internalização dos valores humanos hospitaleiros que caracterizam o nosso modo de cuidar e estar em saúde, somos pessoas ao serviço do outro.
Pedro Varandas: Existe desde há alguns anos uma cultura de precarização das relações de trabalho que teve como consequência uma menor vinculação das pessoas das gerações mais jovens. A vinculação é algo que procuramos, pois é quando alguém se identifica com os nossos valores que presta um melhor serviço.
Idília Carneiro: Tentamos marcar a diferença dando algo com mais valor ao nível da relação humana e que a pessoa sinta que ao participar nesta missão hospitaleira e estar ao serviço da pessoa doente também se enriquece enquanto pessoa e fortalece a própria dignidade, porque está a contribuir para que outras pessoas frágeis possam sentir-se mais dignas.
Quais são os projetos e desafios futuros para as Irmãs Hospitaleiras do Sagrado Coração de Jesus?
Idília Carneiro: Em termos globais, diria que temos o desafio das pessoas. Gostaríamos de continuar a ter connosco e nas nossas equipas pessoas boas e bons profissionais, competentes e comprometidos com o bem fazer e bem cuidar os melhores técnicos e os especialistas mais humanizados. O segundo ponto está relacionado com a prestação dos cuidados em resposta às necessidades das pessoas doentes, e interligado com este o da sustentabilidade. O terceiro ponto prende-se com o momento que estamos a viver relativo à reconfiguração da relação de parceria e colaboração com o SNS nas respostas que damos em termos de saúde mental e daquilo que é a Rede de Serviços de Saúde Mental. O objetivo é que possa existir um sentido de rede mais integral para que os institutos e, neste caso, as Irmãs Hospitaleiras, possam ser parceiros diretos na construção de uma resposta articulada e consistente em termos das necessidades de saúde mental do país. A sustentabilidade dos cuidados também é um desafio cada vez maior devido a toda esta situação de crise global que vivemos. É necessário que haja um princípio de equidade e de justiça.
Pedro Varandas: Temos em curso uma diversificação de respostas no âmbito da saúde mental, e pensamos implementar novos projetos ainda este ano ou no próximo. Temos um projeto de criar uma valência dedicada às doenças de comportamento alimentar na nossa Unidade de Lisboa. Queremos criar uma unidade de hospital de dia, não como uma alternativa ao internamento, mas ainda assim para situações graves que precisem de cuidados e que normalmente são prolongados. É uma resposta que não existe e portanto é uma necessidade que se quer suprir.
Na Casa de Saúde de Idanha estamos a criar uma unidade com várias valências ambulatórias em articulação eventual com internamento, que vão desde a Eletroconvulsivoterapia, Estimulação Magnética Transcraneana, Medicina do Sono.
Na região de Lisboa, temos intenção de criar mais uma área de ambulatório para apoio a adolescentes e jovens adultos com intervenções diferenciadas mais orientadas para as novas formas de sofrimento psicológico que em muitos casos resultaram do impacto pandémico e do isolamento social nos mais vulneráveis.
Em Condeixa-a-Nova – Casa de Saúde Rainha Stª Isabel, estamos a desenvolver uma unidade de intervenção nas adições não farmacológicas, como por exemplo, jogo, jogo online e adição à internet. Em Braga, contando com uma estrutura física totalmente renovada, estamos a ampliar os serviços de ambulatório que não tínhamos, com uma diferenciação de respostas e intervenções clínicas.
Na área das Demências já utilizamos tecnologias com inteligência artificial pelo que estamos num patamar bastante diferenciador. Na reabilitação geral avançaremos também com formas de intervenção articulada entre tecnologias de estimulação, fisioterapia e intervenções psicológicas que o conhecimento científico nos foi demonstrando evidências de eficácia.
Em resumo estamos a apostar na inovação e na especialização de respostas e serviços para podermos intervir com mais eficácia em todas as formas do adoecer e nas novas apresentações de doença mental que predominam nos dias de hoje, mantendo ao mesmo tempo o nosso foco nos doentes graves que necessitam ainda de cuidados em internamento mesmo que a ciência ainda não nos tenha possibilitado alternativas de reabilitação mais eficientes.
Tentaremos manter sempre este equilíbrio na procura da inovação e de novos desafios para o cumprimento da missão que são a integralidade e dignidade do ser humano ao nosso cuidado.